Por elaine tavares
A votação da nova
resolução que trata das bolsas para estudantes foi outro momento importante no
Conselho Universitário da UFSC. De novo, mesmo com nova direção, a instituição
mostrou que tem medo de qualquer rugosidade que se apresente na aparente “paz”
vigente no campus. Como a proposta da administração apresentava avanços, mas
também recuos, os estudantes entenderam que diante de um tema que lhes dizia
respeito era preciso uma participação maior do que a representação minoritária
que hoje têm no Conselho. Assim, exigiram uma sessão aberta. Como sempre
acontece nesses casos, o tema foi polêmico, mas, pressionados pelo número
expressivo de estudantes, os conselheiros aceitaram transferir a sessão para o
auditório da reitoria e discutir de forma mais democrática as questões que
envolviam uma mudança radical na vida dos estudantes bolsistas.
Para quem tem memória
curta é bom avivar. Até o ano de 2005 as bolsas para os estudantes de graduação
eram chamadas de bolsa de treinamento. Assim, os estudantes empobrecidos que
precisavam da bolsa para poder se manter na universidade, eram obrigados a
prestar serviços em algum lugar da instituição. No mais das vezes, eram a mão
de obra necessária numa universidade carente de técnicos-administrativos em
educação. Faziam às vezes de trabalhadores.
Essa situação era veementemente rejeitada pelas entidades estudantis e pelo
sindicato dos trabalhadores. Muitas lutas foram então travadas, em parceria,
para que isso mudasse. E foi justamente essas lutas, culminadas no dia 18 de
agosto de 2005, quando estudantes e TAEs foram acusados de sequestro e formação
de quadrilha, por terem ocupado o Conselho Universitário, que fizeram a
proposta avançar (ver reportagem sobre o tema: http://eteia.blogspot.com.br/2012/12/condenados-por-lutar.html ). Depois de toda essa batalha a bolsa passou a ser conhecida
como bolsa permanência e já não havia mais a obrigatoriedade de o estudante
prestar serviço. Agora, ele tinha de se
ligar a um projeto de pesquisa e atuar nele.
Foi uma vitória
importantíssima de estudantes e TAEs, mas, com o passar do tempo, na prática,
muito pouca coisa mudou. A bolsa permanência ainda obrigava os estudantes a se
vincularem a algum projeto e, de novo, lá estavam eles, servindo de mão de obra
para os setores carentes de técnicos administrativos em educação. Poucos eram
os setores que garantiam aos estudantes as horas para estudo.
Por isso, a luta
sempre se manteve. Qual o motivo que leva o estudante de graduação ser obrigado
a uma contrapartida de trabalho, se os de pós-graduação tem outra política? Por
que não haver uma isonomia nesse quesito? A impressão que se tinha era de que o
empobrecido era penalizado duas vezes. Primeiro, por estar na condição de
empobrecido e, segundo, por ser obrigado a realizar um trabalho em pagamento da
bolsa. Isso, além de injusto, atrapalhava os estudos.
Toda essa discussão
levou o governo federal a pensar numa nova política de bolsas que garantisse
não só a permanência dos empobrecidos, agora em maior número por conta das
políticas de inclusão, mas também a qualidade do estudo, sem a obrigatoriedade
do trabalho. Foi por conta disso que a
UFSC teve de rever todo o processo de concessão de bolsas. Nesse sentido, uma
comissão elaborou uma proposta que seria então debatida e aprovada no Conselho
Universitário.
Os avanços e os recuos
O avanço significativo
da proposta era o de que com a nova política, o estudante de graduação não
estaria mais na condição de trabalhador. Ele receberia a bolsa para estudar, e
ponto. Mas, a velha visão escravagista
que parece nunca se acabar nesse país, não podia deixar o estudante apenas
estudar. Havia que impor regras que tornassem muito claro a sua condição de
“ajudado”. Assim, a proposta incluía um tempo máximo para o aluno receber a
bolsa, índices de frequência, e outras exigências que falaremos a seguir. Para
os estudantes, algumas dessas exigências eram inconcebíveis, uma vez que
prejudicariam os alunos. Daí a necessidade de discutir mais e de buscar formas
de convencer os conselheiros sobre o tema.
Na primeira parte do
debate, na tarde do dia 20 de agosto, a sessão foi aberta. Nela, foram
aparecendo os conflitos. Falaram os estudantes, falaram os técnicos, falaram os
conselheiros. Mas, como sempre acontece na relação de poder entre professor e
aluno, professores há que não conseguem dialogar sem se colocar numa posição de
superioridade. A reunião degringolou a ponto de um conselheiro quase bater num
aluno. Sem clima para prosseguir, estudantes e TAEs abandonaram o plenário, e a
reunião foi suspensa. E como sempre acontece a culpa do “bafom” recaiu sobre os
estudantes.
Na semana seguinte,
nova reunião do conselho foi realizada para terminar o tema. Outra vez os
estudantes solicitaram que a reunião fosse aberta. Mas, os conselheiros,
indignados com o conflito da semana anterior, tinham restrições. Um
representante do DCE teve direito a uma fala na qual tentava convencer os
conselheiros sobre a necessidade de abrir o debate, permitir que mais
estudantes participassem, numa sessão aberta. Segundo ele, não era legítimo que
os estudantes seguissem reféns das decisões relacionadas à suas vidas tomadas
em portas fechadas. Que os conselheiros
tivessem sensibilidade e ouvissem os estudantes. Alguns conselheiros riram
alto, ridicularizando o estudante.
Depois, passou-se à
discussão se devia ser aberta ou não a sessão. O diretor do CFH defendeu que
fosse sessão fechada porque a discussão já havia sido realizada. Disse que não
se sentia à vontade para uma sessão aberta e que não seria o “bafo no cangote”
que deveria obrigar a isso. Também disse que eram poucos os estudantes na
porta. “Se fossem cinco mil, aí sim”. Esse argumento foi rebatido pelo
estudante Tito. Ele disse que não entendia qual o critério que orientava essa
democracia. Em que cinco mil valiam mais do que os que estavam ali fora? Outros
argumentos vieram contra e a favor, mostrando que o tema “democracia” ainda é
um grande tabu. A universidade como instituição, consolidada no seu conselho
máximo, mostra que não está preparada para enfrentar os conflitos naturais que
se explicitam no cotidiano. Atuando na mentalidade de séculos passados, os
conselheiros – maioria docente – ainda temem o debate aberto e livre. Tripudiam
dos estudantes, como se eles não fossem capazes de serem sujeitos de suas
existências.
Enquanto rolavam os
debates sobre se a sessão abria ou não, lá fora, o grupo de estudantes
aumentava. Não eram cinco mil, mas estavam reivindicando o seu direito de
participar. Batiam tambores e cantavam palavras de ordem. Incomodados, os
conselheiros se revezam na crítica à “desordem”. Foram lembrados pela bancada dos técnicos que
os estudantes sempre tiveram um importante protagonismo nas lutas sociais. Em
1918, na cidade de Córdoba, na Argentina, um pequeno grupo iniciou uma luta por
melhoria do ensino e mais poder aos estudantes nas instâncias deliberativas.
Eram poucos, mas a luta se espraiou por toda a América Latina e mudou a cara
das universidades em todo o continente. Depois, em 1960, por conta de um tema
prosaico, como o acesso aos dormitórios, os jovens franceses iniciaram um
movimento que acabou mudando o mundo inteiro. Então, porque ser tão
desrespeitoso com a luta dos estudantes por uma bolsa de estudos digna?
A presidente do
Conselho, professora Roselane Neckel, se manifestou dizendo que a democracia
tinha sido cumprida. “Democracia é ouvir e nós fizemos isso. Democracia se
caracteriza pela maioria na votação e é o que fizemos aqui. Não devemos fazer
defesas corporativas. Se faz política com argumentos que tenham veracidade”.
Ficou uma certa perplexidade sobre o conteúdo desse conceito, mas, o conselho,
concordando com o moralismo explícito na defesa, decidiu votar. Foram 24 votos
contra 15 e a reunião seguiu a portas fechadas.
Votaram a favor da abertura, os técnicos-administrativos em educação, os estudantes
e uns poucos professores.
Os pobres precisam ser gênios
A votação que se
seguiu aportou mais uma discussão bastante reveladora do caráter conservador e
quase escravagista do conselho da universidade. Estava em questão o tempo
máximo que o estudante bolsista poderia receber o benefício. A proposta dos
estudantes, apoiada pelos técnicos, era de que a bolsa deveria ser concedida no
tempo máximo que qualquer aluno tem para cursar a faculdade. A comissão havia
trazido a proposta de que o estudante só poderia ter mais dois semestres além
do tempo mínimo, o que obviamente não era uma boa proposta. Imaginem que um
aluno bolsista roda em determinada cadeira que só é oferecida uma vez ao ano,
ele atrasa um ano do curso. Assim, ao estudante pobre estava sendo colocada a
pressão de ser um verdadeiro gênio, sem possibilidade de reprovar. O
vice-diretor do CSE chegou a propor que não se desse nem um semestre a mais
além do tempo mínimo. Ou seja, com o pobre, todo o rigor. Outra professora
ainda trouxe o argumento moral de que havia muitos outros pobres querendo a
bolsa e que era preciso pensar em ampliar o número de bolsas e não pensar
“corporativamente”. Foi um festival de absurdos.
A partir do governo
Lula muitas foram as políticas de inclusão que permitiram um número bem maior
de pessoas empobrecidas entrar numa universidade federal. Vieram as cotas para
negros, as cotas para escola pública, para índios e, a cada ano, essas políticas
abrem mais as portas das universidades para aqueles que, entrando, precisam de
políticas de permanência. Mas, ao que parece, para uma grande parte dos
dirigentes, essa realidade parece não ser visível. Segue a visão elitista, patriarcal,
escravagista. A impressão que se tem é de que algumas pessoas acreditam
realmente que os pobres, que não têm condições de bancar os estudos, não
deveriam estar ali. São um incômodo. Não conseguem ver a bolsa como um direito.
Ao final, chegou-se a uma proposta de que os bolsistas não teriam o tempo
máximo e sim um acréscimo ao tempo mínimo sendo considerada a média aritmética
do curso. Alguma coisa como um ano a mais, no geral. Os técnicos administrativos em educação
votaram contra. Entendiam que os bolsistas deveriam ter o mesmo prazo que qualquer
outro aluno.
Depois ainda houve
debates sobre dois pontos que envolviam aprovação e frequência e tetos máximos
de benefícios. De novo, os velhos argumentos do século XIX. Os estudantes
empobrecidos, para seguirem recebendo a bolsa devem ter 75% de frequência e
aprovação em pelo menos 50% das disciplinas. Mas, não foi fácil chegar até aí.
Muitas foram as opiniões leoninas sobre as regras para os pobres. De novo, a
necessidade de serem gênios e serem submetidos ao rigor excessivo, como se eles
tivessem de ser penalizados por estarem ali “atrapalhando o tráfego”. Defender
que os estudantes bolsistas tivessem o mesmo tratamento que os demais era
chamado de “defesa pequeno-burguesa”, seja lá o que for que isso signifique.
E assim terminou mais
uma sessão do Conselho Universitário da UFSC, mostrando que ainda há muito que
avançar na luta por uma universidade realmente libertadora, que respeite seus
estudantes e que saia da síndrome da idade média. É espantoso observar alguns
educadores explicitando posições que poderiam servir num senhor de escravos.
Parece haver uma grande incapacidade de compreender que os tempos estão
mudando, que a universidade vai sendo tomada por garotos e garotas da classe
trabalhadora, que há uma parcela crescente de gente capaz de batalhar pelos
seus direitos. Mas, ainda segue a igual incapacidade de lidar com o conflito de
maneira aberta, no cara a cara. A democracia ainda engatinha na nossa UFSC.
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